Já passaram alguns anos quando uma pessoa amiga que viajou com a equipa de futebol do Benfica me contou a surpresa que constituiu o facto de um dos guarda-redes ter passado a viagem a ler um livro enquanto os colegas se dividiam entre o ouvir música, jogar às cartas ou a dormir. Parecia ser uma pessoa diferente, com outras preocupações. Recordei esse facto agora que acabo de ler a biografia desse tal guarda-redes: Robert Enke. E o que mais me impressionou não foi tanto as suas preocupações intelectuais. Mas o contexto de medo e de insegurança que em certos momentos viveu como atleta de alta competição, que, no caso de Enke, derivou para uma situação depressiva que mais tarde o levou ao suicídio.
Numa sociedade que vive do espetáculo e da diversão, as estrelas do desporto são muitas vezes avaliados pelo lado das suas capacidades desportivas, é certo, mas também por um certo número de excentricidades chamem-se elas penteados, brincos ou tatuagens. Ou, num lado mais intimo, as mulheres que conquistam ou os carros em que passeiam. Ignoramos, ou pelo menos não damos a devida atenção, que existem pessoas com os seus pequenos ou grandes dramas existenciais. Esta situação parece não deixar tempo para nos questionarmos sobre o sentido civilizacional de uma competição agreste em que o sucesso pode valer milhões, mas que os milhões podem escapar, por uma convocatória que se falha ou um erro que se não consegue evitar. E em que a linha que divide uns ou outros ou o sucesso do insucesso é bem mais próxima que aquilo que imaginamos.
Qualquer que seja o resultado existe uma dimensão humana para além do espetáculo. Ao ler a biografia de Robert Enke recordei Fernando Mamede. E o pânico competitivo que em certos momentos o consumia e o inibia de revelar todas as capacidades e qualidades desportivas que indiscutivelmente possuía. E pergunto-me quantos casos equivalentes não ocorrem no mundo do desporto ainda que com menor repercussão pública. A literatura da especialidade, designadamente a ligada à psicologia do desporto, documenta abundantemente esta dimensão do comportamento dos atletas. Mas um certo otimismo ingénuo associado à ideia de desporto como lugar de vida fácil, de festa, como que esconde que um atleta talentoso é um ser humano com igual risco de patologias comportamentais. E que pode ocorrer quando menos imaginamos.
Publicado na edição de hoje do Primeiro de Janeiro